sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Exemplos de diálogos - III - Discussão acalorada

Neste post vamos evoluir no escopo das discussões com uma situação um pouco mais tensa. Trata-se de uma reunião entre a coordenadora de uma escola e o pai de um aluno, obviamente um aluno que apresenta alguns problemas comportamentais, senão a coordenadora não teria proposto a reunião.

Exemplo

- Boa tarde, meu nome é Analu, e eu sou a coordenadora da sexta série. Como eu sei que o senhor está em horário de trabalho, senhor Henrique, procurarei lhe tomar o mínimo de tempo.
- Boa tarde. Meu filho disse que eu deveria trazer este papel, uma OCORRÊNCIA, assinado para esta reunião.
- Eu devo explicar ao senhor que este papel é importante para a Escola, e vai para a pasta do seu filho...
- Deixa eu interromper a senhora só um instante. Eu assinei este papel com muita estranheza, porque discordo totalmente deste tipo de coisa. Um relatório deste tipo, com o nome de Ocorrência quase iguala meu filho a um delinquente de rua.
- Senhor Henrique, de forma nenhuma estamos igualando seu filho, ou qualquer aluno, a um delinquente. O relatório é necessário, porque um dia alguém do Conselho Tutelar, ou um promotor, pode pedí-lo.
- E vai pedir por quê ?
- É desagradável tratar disto, mas é porque alguns pais podem entrar na justiça contra a escola.
- E por que os pais fariam isto.
- Já que o senhor insiste, e não nos leve a mal, é porque alguns alunos são convidados a deixar a escola.
- "Convidados a deixar a escola" significa expulsar, não é ?
- Nós nunca expulsamos. Apenas sugerimos que ele procure outra escola ao fim do semestre.
- E as Ocorrências servem como prova !?
- Sim. É isto. Mas vamos conversar sobre a Ocorrência, para não tomar o seu tempo. O seu filho vem apresentando alguns comportamentos inadequados, e a professora dele reclamou.
- Quais ?
- Ele pede para ir ao banheiro durante a aula.
- Eu também vou ao banheiro regularmente, até por conselho médico. Qual é o problema ?
- É porque ele pede mais de uma vez antes do recreio e, as vezes, depois do recvreio também.
- É só isto ? A senhora vê problema no fato do meu filho ser saudável ?
- Ele poderia se controlar um pouco. Os outros alunos só vão na hora do recreio, pedindo para ir durante a aula eventualmente. Já com o seu filho isto ocorre frequentemente.
- Olhe, dona Analu, ...
- Pode me chamar de Nalu.
- Nalu, meu filho não precisa ser igual a todos os outros alunos, principalmente em se tratando do campo da saúde. Se ele tivesse asma, vocês o deixariam sair da sala para tossir. Se fosse deficiente, também.
- Mas estas exceções tem laudo médico e atestados para justificar.
- Ora, será que eu vou ter que arranjar um laudo atestando que meu filho faz muito xixi ?
- Se fosse só isto, tudo bem. Mas ele também se recusa a fazer certas atividades em sala de aula.
- Não, espera ai. Quer dizer que o problema de fazer muito xixi pode ser tolerado se o menino for bom aluno ?
- Bem ... o senhor compreende que todos os comportamentos são só elementos de um mesmo quadro.
- Que quadro ?
- É uma certa indisciplina.
- Sobre fazer atividades, eu até concordo. Mas sobre ele fazer muito xixi acho uma agressão ao meu filho. A Separe uma coisa da outra. Uma se refere às necessidades fisiológicas. Outra se refere ao assunto da escola.
- Senhor Henrique, este tipo de coisas, aparentemente de origens diferentes, tem o mesmo sentido. Ele quer fugir das atividades. Quer sair o máximo possível da finalidade da aula.
- A senhora compreende que ele pode estar apenas nervoso, o que o faz pedir prá ir ao banheiro, só prá sair da sala ?
- Se ele está nervoso, o senhor que é pai pode nos dar uma pista do porquê.
- Meu filho é um garoto normal. Joga videogame, brinca, faz natação, é sossegado, carinhoso, faz escotismo, enfim, não tem problemas de comportamento.
- Mas aqui na escola ele apresenta estes problemas.
- Então, o problema não está na minha casa, mas na sua escola.
- Senhor Henrique, os alunos precisam aprender a ser disciplinados.
- A senhora já se questionou sobre a validade dos métodos utilizados, que são praticamente os mesmos de quando nós estávamos na escola ?
- Para o senhor ficar informado, eu estou fazendo um curso de neurosciências, onde estamos vendo tudo o que está sendo descoberto em torno do aprendizado.
- Mas as professoras que a senhora coordena também estão informadas sobre estas novidades ?
- Ainda não. Mas tudo é um processo.
- Cara Nalu, então não estamos indo a lugar nenhum. A senhora está em contato com as novas técnicas, mas não é quem dá as aulas. Suas professoras, tanto aqui quanto nas outras escolas, em sua maioria, estão usando as velhas técnicas, e os problemas devem ser os mesmos aqui e em outros lugares.
- Senhor Henrique, não é nossa função aqui discutir a situação do ensino, mas o problema do seu filho.
- Nalu, você está errada, pois é justamente este o problema. Meu filho é muito ativo e criativo. Provavelmente a aula não está despertando nele nenhum interesse, pois, assim como no nosso tempo, a aula a que ele assiste é do tipo PROFESSOR TRANSMITE CONHECIMENTO PARA O ALUNO.
- Mas só o seu filho está apresentando este problema.
- Nalu, sua escola não está sendo obrigada, como as outras, a aceitar os meninos com síndrome de Down ?
- Sim, mas o quetem isto a ver ?
- Eles não precisam ser tratados de forma diferente ?
- Sim.
- Ora, se o meu filho está sendo quase considerado doente, façam uma exceção para ele também.
- No caso do seu filho, existem mais soluções disponíveis. Existem meios de melhorar a concentração dele, e acho que podemos resolver.
- Qual é a sugestão da senhora ?
- Existe um medicamento que está sendo usado com os meninos que tem dificuldades de concentração.
- Remédio ?
- Sim, é a Ritalina.
- Espera um pouco prá eu entender. Agora, para o aluno se concentrar na aula, vocês aconselham os pais a lhes dar um remédio ?
- Não somos nós que faremos isto. Não temos esta autoridade para diagnosticar e nem para receitar o que quer que seja. Nós encaminhamos o aluno para um profissional que faz um laudo e que PODE receitar um medicamento que auxilie o aluno.
- Veja bem, então se vocês encaminharem o meu filho para um profissional deste, uns dias depois meu filho estará assistindo as aulas "drogado", mas focado, obediente e de acordo com o que vocês esperam ?
- Senhor Henrique, não é bem assim ...
- Nalu, na nossa época disciplinava-se o aluno. Não estou pedindo para que vocês o façam do jeito que era feito, com medo e castigos. Vocês são os profissionais de ensino, e cabe a vocês, até com os conhecimentos desta tal de neurosciências, que você citou, acharem os caminhos para controlar os alunos.
- Senhor Henrique, vamos fazer isto com a colaboração dos pais.
- E já digo uma coisa a você: não admito esta ideia de dar ao meu filho a "droga do aprendizado". Não é assim que vamos resolver o problema.
- Antes disto, o senhor fique tranquilo, vamos sugerir o que temos de mais utilizado, que é a orientação psicológica. Vamos recomendar que o senhor procure um profissional especializado.
- Olhe, Nalu, eu e minha mulher já pagamos uma escola cara. Além disso vamos ter que pagar um psicólogo também ?
- O senhor não quer resolver o problema do seu filho ?
- Nalu, vocês utilizam o argumento da maioria. Os outros alunos ficam quietinhos, fazem as atividades que a professora manda, mas eu pergunto: Eles realmente aprendem ?
- Eles são disciplinados, acompanham a aula, fazem as atividades. É a função da escola.
- A função da escola é ministrar atividades ou é realmente a de formar gente que raciocine ?
- Senhor Henrique, a Secretaria de Educação tem que ter parâmetros registrados dos resultados. Não temos como medir o raciocínio dos meninos.
- Mas vocês sabem claramente diferir os criativos dos "moscas mortas", repetidores de conhecimento ou simplesmente soldados de escola.
- Somos apenas responsáveis pelo conteúdo. Em cada série, fazemos o possível para o aluno absorver o conteúdo.
- Pensei que a escola formasse pessoas que saibam pensar.
- Senhor Henrique, temos as exigências da Secretaria de Educação, que só podem ser estabelecidas pela medição de alguma coisa, no caso a nota do aluno.
- Agora vejo porque os alunos são desinteressados, porque viadutos tem caído em nosso país, e porque os projetos não vão para frente. Sem falar nos políticos que exploram o povo.
- Senhor Henrique, discutir isto não é de nossa alçada.
- Discordo de você. A escola é o nascedouro de tudo. As prioridades do país, que vivem falando na TV e nas campanhas eleitorais são Educação e Saúde. A educação é tudo. Estou profundamente decepcionado. Vamos ser objetivos então. Me indique um profissional, um psicólogo, que mando meu filho pra ele.
- A escola não indica um profissional. Temos estes três aqui (e distribui os cartões deles).
- Vou escolher um então. Eu tenho que ir. Boa tarde.

Objeto do diálogo

O objeto do diálogo é a discussão sobre a situação escolar de um aluno.

Envolvidos

A coordenadora da sexta série de uma escola e o pai de um aluno com alguns problemas escolares.

Estabelecendo o local do diálogo

Provavelmente ele ocorreu na escola em que Analu é coordenadora, pois é o usual. Isto fica, de certa forma caracterizado pelo que ela diz ao pai do aluno: "Como eu sei que o senhor está em horário de trabalho ...".

Estabelecendo o tempo do diálogo

O texto dá, claramente, a parte do dia em que ocorreu o diálogo: "Boa tarde, ...".

Característica do diálogo

A principal característica do diálogo é a tensão entre os interlocutores. A coordenadora está empreendendo a difícil tarefa de apresentar a um pai de aluno os problemas que ele está apresentando em sala de aula, e este está quase interpretando o papel de filho, se colocando no lugar dele, para ser chamado a atenção pela coordenadora.

Em alguns momentos, os interlocutores utilizam, de forma leve, os maus argumentos. Dissemos leve porque ambos sabem que o problema realmente existe, mas não é de exclusiva culpa de nenhum dos lados.

Mau argumento 1

O pai, obviamente pressionado, quase na condição de acusado (assim ele se sente, pois está representando o filho, porém na pele de um adulto que sente todas as consequências dos atos do filho), profere a seguinte frase, ao entregar um papel em que viu escrita a palavra OCORRÊNCIA: "Um relatório deste tipo, com o nome de Ocorrência quase iguala meu filho a um delinquente de rua.".

Aqui ele utiliza o argumento do "espantalho", deturpando o status de estudante, do filho, abaixando o seu nível para o de "delinquente". E ao abaixar o status do filho na situação, pretende colocar tal termo na boca da escola, que emitiu um documento com o nome de Ocorrência, comparando aos Boletins de Ocorrência que a polícia lavra para os crimes, portanto para os criminosos. E é isto o que ele entende da situação.

Mau argumento 2

Ao informar o pai de que "O relatório é necessário, porque um dia alguém do Conselho Tutelar, ou um promotor, pode pedí-lo", a coordenadora está utilizando o "Apelo ao medo". Citar o Conselho Tutelar é uma forma de constranger o pai, pois praticamente diz a este que ela, a coordenadora, ou a escola, podem chamar este órgão, que tem o poder de questionar os pais quanto às suas ações sobre os filhos.

Mau argumento 3

Este só pode ser estudado na complexa estrutura de argumentos do trecho:

"- Para o senhor ficar informado, eu estou fazendo um curso de neurosciências, onde estamos vendo tudo o que está sendo descoberto em torno do aprendizado.
- Mas as professoras que a senhora coordena também estão informadas sobre estas novidades ?
- Ainda não. Mas tudo é um processo."

A coordenadora (1) estabelece para si um status alto para a discussão "eu estou fazendo um curso de neurosciências ... vendo tudo o que está sendo descoberto ...". Ou seja, está reinvindicando para si uma autoridade no assunto em discussão. (2) O pai quer verificar se este é o mesmo status das professoras, fazendo a pergunta "Mas as professoras ... também estão informadas ... ?". E a coordenadora (3) reconhece que não "Ainda não", e (4) encontra apenas  uma desculpa: "Mas tudo é um processo". Ela não marca uma época para a conscientização das professoras a respeito dos novos conhecimentos, e nem de que forma será feito. É a desculpa institucional.

Mas vamos ao reconhecimento do tipo de mau argumento.

Os argumentos 1 e 2, em conjunto, pretendem estabelecer a metáfora da "Autoridade Irrelevante". A coordenadora reivindicou o status de autoridade em Neurosciências apenas por estar fazendo um curso. Além desta reivindicação, ela, acrescentando a chamada de discurso "Para o senhor ficar informado, ...", impõe um tom antipático, tentando diminuir a figura do pai do aluno, numa tentativa clara de intimidação.

O argumento 4 é pior do que os antecedentes , e é considerado do tipo "Equívoco" por Ali Almossavi. Ao utilizar a palavra "processo", a coordenadora tenta iludir o pai, como se houvesse "UM CONJUNTO CONHECIDO E TESTADO DE PROCEDIMENTOS ORGANIZADOS PARA RESOLVER O PROBLEMA". E sabemos que este tipo de solução, no plano educacional simplesmente não existe, pois, neste plano,  existem indivíduos com caráter muito diverso, um do outro.

Mau argumento 4

Ainda em relação às neurosciências (citadas como argumento nesta situação), é feita uma argumentação, pelo pai: "A senhora está em contato com as novas técnicas, mas não é quem dá as aulas. Suas professoras, tanto aqui quanto nas outras escolas, em sua maioria, estão usando as velhas técnicas,". Ele mostra à coordenadora o erro de interpretação em relação aos conjuntos, denominado "Composição e divisão" por Ali Almossavi, que diz "inferir que um todo deve ter determinado atributo, porque uma de suas partes o possuem".

E o sentido percebido e estendido pelo pai ainda mostra que ainda pode existir o problema da "transmissão do atributo", ou seja, os conhecimentos adquiridos, mesmo para a maioria das professoras, deixaria algumas de fora, que continuariam gerando o problema em partes discretas do universo escolar.

Toda ciência, até que seja divulgada, pode ser considerada inexistente. Não basta adquirir conhecimento; é preciso replicá-lo para várias fontes secundárias.

Mau argumento 5

É o tipo mais usado ultimamente no Brasil. Quando o pai diz "- E já digo uma coisa a você: não admito esta ideia de dar ao meu filho a 'droga do aprendizado'. Não é assim que vamos resolver o problema." ele faz uma caricatura de um medicamento específico, elevando-o à característica geral de DROGA.

Este é o argumento do "Espantalho", ou seja, o emissor coloca a máscara mais ridícula, mais depreciativa sobre a entidade relacionada à discussão, pois é mais fácil atacar uma caricatura do que uma ideia de mais alto nível.

Comentários

Este tipo de diálogo, com este tipo de argumentação da escola, na pessoa de uma de suas coordenadoras, está sendo uma espécie de padrão das instituições. A ênfase não reside no PROBLEMA, e sim na busca de DESCULPAS, boas ou más, mas que acabam nesta coleção de maus argumentos. Nem exploramos os outros existentes no texto, deixando este trabalho para o leitor. E, esta tática, acaba redundando numa tentativa de dispersão da atenção, desvio do foco principal das finalidades, no caso, da escola. A finalidade das escolas foi desviada para o lucro. Resolver problemas dá trabalho.

Conclusão

Mostramos os maus argumentos em situações de fato. Quantos pais já não experimentaram contextos de conflito escolar desta espécie ? Este estudo também serve de auxílio aos pais que estão sendo enrolados pelas escolas.

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